Um ano de Primavera Árabe: perspectivas regionais e um olhar para o Brasil

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O jornalista Frances Gilles Lapouge afirma que o movimento chamado de “Primavera Árabe” terminou. Será? A princípio discordo dessa assertiva pelo simples fato de que esse movimento na realidade é um processo sócio-político e como todo processo possui em seu bojo um conjunto de fases que podem ser resumidas em início, meio e fim. Há um ano atrás, um jovem comerciante tunisiano de nome Mohamed Bouazizi certamente não imaginava que seu ato extremo de tirar a própria vida (imolação) como forma radical de manifestar seu repúdio em relação à conduta de funcionários da prefeitura de Sidi Bouzid, na Tunísia, que confiscaram suas mercadorias (frutas), desencadearia uma série de movimentos sociais e políticos na África do Norte, particularmente no Magreb e Oriente Médio, como um verdadeiro estopim a incendiar várias ações naquelas regiões. O ponto em comum nesses movimentos gira basicamente em torno de cinco motivações: emprego, combate à corrupção e à alta dos preços dos alimentos, liberdade e direitos sociais. Os regimes políticos nas duas regiões, exceto a democracia aplicada por Israel, favoreceram a eclosão dessa verdadeira onda de manifestações, haja vista ser uma característica da autocracia3 a concentração e perpetuação do poder em uma única pessoa, quer seja presidente, rei, emir ou sultão.
Foi na própria Tunísia que se deu o início ao processo. O ditador Ben Ali fugiu para a Arábia Saudita e o partido islâmico Enhada vence as primeiras eleições e ganha a maioria no Parlamento que redigirá a nova constituição.

Em seguida veio o Egito, também no Magreb, com uma cobertura jornalística enorme, proporcional à grandiosidade dos movimentos de rua, especialmente no entorno da Praça Tahir, no Cairo. O também ditador Hosni Mubarak é deposto e preso, vencendo a primeira eleição a Irmandade Muçulmana. No extremo sul da península arábica, no Oriente Médio, os movimentos surgem no Iêmen, país mais pobre da Península Arábica, inspirados nos realizados na Tunísia, Egito e Líbia. O ditador Ali Abdullah Saleh foi gravemente ferido durante ataque de tribos rivais ao palácio presidencial, sendo conduzido para a Arábia Saudita com vistas a tratamento, onde assina acordo de transição de poder. Após receber alta Saleh retornou ao Iêmen para, de acordo com promessa sua, deixar o país no início de 2012, recebendo imunidade na mesma Arábia Saudita. Vale destacar dois aspectos significativos. O primeiro é que o Iêmen tem sido uma terra fértil para o grupo terrorista “Al-Qaeda”, em face da existência de uma verdadeira “terra de ninguém” no seu território, com chefes tribais mobilizando uma massa de combatentes para reivindicar áreas específicas, com diversos clãs digladiando-se entre si. O segundo é o desafio do grande influxo de refugiados oriundos da Somália, no outro lado do Golfo de Éden, no chifre da África, tendendo a formarem um enorme contingente humano sem trabalho, comida ou meios de sobrevivência, caso a situação política do país se deteriore mais ainda.

Na mesma península, do lado oposto, no Golfo Pérsico, surgem os movimentos no Bahrein. Alegando ter sido escolhido pelo Conselho de Cooperação do Golfo para “acalmar os ânimos” populares, tropas da Arábia Saudita entram no emirado, e conseguem conter os manifestantes. A monarquia do emirado ainda resiste, mas o Emir Hamad teve que anunciar o aumento do investimento na área social, além de depositar alguns milhares de dólares na conta de cada família do Bahrein.

A violência crescente que já ocorria há meses na Líbia chega ao seu clímax com a morte do ditador Muamar Kadafi4. A participação decisiva de jovens durante a revolução e na captura de Kadafi tem contribuído para restaurar a imagem da juventude na Líbia. O Conselho Nacional de Transição se prepara para as primeiras eleições do parlamento que irá escrever a nova constituição do país, alem de assumir o compromisso de investigar as circunstâncias da morte de Kadafi na periferia de sua cidade natal, Sirte, juntamente com o Tribunal Penal Internacional, pressionado pela ONU e por ONG5 de defesa dos direitos humanos.

De volta para o Oriente Médio, a Síria enfrenta os insurgentes de forma pesada, por meio das forças de segurança, especialmente no norte do país, em torno da cidade de Jisr-al-Shougour, desencadeando a fuga de milhares de refugiados para a Turquia. A Liga Árabe anuncia a suspensão da Síria e promove sanções econômicas ao regime, seguida pelos EUA, Árabes, União Européia e Turquia, que estrangulam a economia síria. Por ser próximo ao Irã e possuir histórica “simpatia” (apoio militar) para com o braço armado do partido político Hezbolah, no Líbano, teme-se que a violência localizada se propague para outras partes do país, com reflexos diretos para a Turquia, Jordânia, Líbano e Israel. Bashar Assad se mantém ainda no poder por causa do apoio das Forças Armadas, aliadas com as elites econômicas sírias.

E os aspectos político-estratégicos das demais nações no entorno das duas regiões, como se apresentam?

É certo que estejam preocupados e atentos às reivindicações e às ondas dos movimentos nas regiões circunvizinhas, especialmente pelo fato de serem regimes autocráticos de origem violenta – tomada de poder – ou por hereditariedade vitalícia.

Na Mauritânia, oeste do Magreb, o ditador Mohmamed Abdelaziz ainda permanece no poder sufocando manifestantes com base no uso da força militar.

Seu vizinho a nordeste, a Argélia, também uma ditadura militar, enfrenta confrontos desde dezembro de 2010, motivados principalmente pela inflação, desemprego e restrições políticas. Os acontecimentos que deram partida ao processo ocorrido no seu vizinho ao norte, Tunísia, foram importantes para as manifestações populares. O governo da Argélia decidiu cortar os impostos sobre os alimentos e acabar com o estado de emergência que durava quase vinte anos. A revolta teve apoio explícito da Al-Qaeda, perdendo força e permanece latente, tendo o ditador Abdelaziz Bouteflika prometido reforma constitucional.

Situado entre a Mauritânia e a Argélia, a monarquia em Marrocos permanece viva, e enfrenta os protestos contra a corrupção, desemprego, alto custo de vida, e o estabelecimento de uma nova constituição, pelo simples fato de ser o monarca um descendente direto de Maomé e, em decorrência, ser considerado um líder secular6. A reforma constitucional aprovada deu mais poderes ao Parlamento, entretanto, o rei Mohammed VI manteve o controle sobre o Judiciário, a chefia suprema das Forças Armadas e, principalmente, o de ser o guardião supremo da fé.

Retornando à Península Arábica e no Oriente Médio, o feudo familiar que reina na Arábia Saudita governa como se estivesse na idade média. O rei Abdullah Bin AL-Saud permanece sendo o chefe de Estado e de governo, tendo o Alcorão como constituição, inexistindo partidos políticos. Todas as manifestações internas fracassaram (pedido de eleições, de libertação de presos políticos, campanha pelo direito das mulheres dirigirem automóveis, etc.). Todavia, para manter a “calma”, a monarquia liberou mais de uma centena de bilhões de dólares em benefícios sociais, aumentou os salários do funcionalismo público, anunciou possíveis eleições municipais e permitiu que as mulheres possam votar e se candidatarem.

Os vizinhos da Arábia saudita também “andam sobre uma corda-bamba” política. O Kuwait é um emirado7 e o emir Sabah AL-Ahmad está, como sempre, acima da lei, podendo nomear o primeiro-ministro, dissolver o Parlamento e suspender direitos constitucionais. Mesmo tendo o emir distribuído mais de três mil dólares para todo kuwaitiano, diante das pressões dos manifestantes contra a corrupção e de paralisações de trabalhadores da indústria do petróleo, o gabinete caiu.

Situado ao sul da Península Arábica, Omã sofreu uma série de protestos não contra o sultanato8, mas sim contra a corrupção de altos funcionários do governo. O sultão Qaboos Bin Said, uma pessoa popular, acumula os cargos de primeiro-ministro, chanceler, ministro da Defesa, das Finanças e diretor do Banco Central. Anunciou uma reforma ministerial, mantendo o sultão com seus atuais cargos, criação de empregos e aumento do soldo da tropa, do valor das aposentadorias e prometeu dar mais poderes ao parlamento que, até então, possui um poder simbólico.

O rei Abdullah II é o próprio Estado jordaniano, assinando, executando e vetando leis, e possuindo o poder de dissolver o Parlamento, exonerar juízes e emendar a constituição. Os protestos na Jordânia não contestavam a autoridade do rei, mas novamente reivindica reformas políticas, combate à inflação, ao desemprego e desigualdades. A reação do governo foi cautelosa, anunciando subsídios para a gasolina e alimentos, demissão do gabinete e prometer reformas constitucionais que permitam eleição direta para premiê.

Analisando essa conjuntura regional, é possível inferir que a ditadura secular (autocracia) se mostrou ultrapassada e que o modelo extremista do uso do terror com finalidade política, como empregado pela Al Qaeda, foi preterido nos movimentos da Primavera Árabe.

Outro aspecto observado nas relações estratégicas internacionais foi a perda da parceria do Ocidente (leia-se EUA e OTAN) com o ditador deposto Hosni Mubarak (Egito).

Apesar da crise política com a saída de cena de Abdullah Saleh, os EUA renovaram por mais dez anos um pacto militar com o Iêmen por meio do qual é garantida às Forças Armadas norte-americanas o acesso às bases no estratégico reino insular do Golfo Pérsico e ao armazenamento de equipamentos militares norte-americanos em solo bareinitas. Vale lembrar que o Iêmen sedia a 5a Frota da marinha dos Estados Unidos.

Por outro lado, Israel está muito preocupado com a ameaça de suspensão do acordo de paz com o Egito, pois perdeu um de seus principais aliados, Hosni Mubarak, e teme pela crescente instabilidade na Síria, seu vizinho ao norte, antes “estável”, a tal ponto que motivou negociações secretas em torno da devolução parcial das Colinas de Golã, agora interrompidas.

Mesmo intermediando o apoio do Irã – armamento e treinamento – ao Hezbollah, no Líbano, a Síria está cada vez mais isolada, em todos os sentidos, política e nas trocas comerciais, tanto em relação à Liga Árabe, bem como perante os organismos internacionais. Até quando ela conseguirá sobreviver depende da capacidade do governo em negociar com os manifestantes, que crescem a cada dia, tanto nas suas manifestações, bem como na repressão violenta do governo sírio. O consentimento dado para a presença de representantes daquela Liga dentro do seu território, para melhor acompanhar e avaliar a complexa situação política e social é um passo importante para a distensão dos conflitos naquele país.

Por outro lado, a Turquia, reconhecida pela sua influência no campo comercial e cultural do mundo árabe, é vista como modelo de governo na região, tendo desempenhado um papel importante nas crises da Líbia e na Síria, ainda em plena escalada.

Os partidos islâmicos moderados, que dizem conciliar a religião com a democracia, são as grandes esperanças.

A mobilização social, por meio das novas redes globais, teve uma participação fundamental de mobilizar e organizar os protestos, possibilitando contornar os experientes aparatos de segurança dos jovens países árabes.

Portanto, a Primavera Árabe não só permanece em pleno desenvolvimento, protestando e acompanhando o cumprimento das promessas e a evolução das ações empreendidas pelos governos de cada nação envolvida direta e indiretamente, mas, sobretudo, promove mudanças de comportamento de pessoas sem a participação de partidos políticos e das suas estruturas organizacionais, bem conhecidas na História, algo novo e muito significativo no campo dos movimentos sociais e políticos.

Um aspecto praticamente presente em todas as nações envolvidas com a Primavera Árabe, a corrupção, também atinge o nosso País de forma vexatória e, de maneira crescente, envolve os três poderes da União e na maioria dos estados e municípios brasileiros. Mesmo dotando uma liberdade de expressão e de acesso crescente às redes sociais não se observa uma mobilização permanente e organizada da opinião pública em todo o País, ainda contrariamente quando se trata de aspectos ambientais e sociais que se apresentam mais ativos e com reflexos nos três níveis do parlamento brasileiro.

Distante geográfica e culturalmente daquelas regiões, a expectativa de governos democraticamente eleitos promoverem mudanças significativas nos campos sociais e econômicos está sendo atendida. No caso brasileiro, entendo que essas mudanças estão sendo realizadas parcialmente, haja vista o custo elevado e as distorções do uso das ajudas promovidas pelas bolsas família e da exagerada carga tributária, particularmente na área trabalhista.

Será que teremos que aprender com os movimentos da Primavera Árabe para ser obtida uma solução pacífica contra os desmandos decorrentes da corrupção desenfreada praticada por autoridades nos mais diversos níveis de poder e de gestão administrativa?

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