Semana de Arte Moderna de 1922

E o Nordeste não foi convidado…

 

Prof. Marcos Formiga – CEAM-UnB

 

 

A Europa, nas primeiras décadas do século 20, assistiu o surgimento de diversos movimentos artísticos de vanguarda que refletiam a inquietude intelectual e política daquela época: anarquismo, sindicalismo, socialismo. Esta efervescência deflagra a Primeira Grande Guerra (1914-1918), com consequências socioeconômicas perturbadoras que irão marcar toda a primeira metade do conturbado e violento século 20: Grande Depressão Econômica (Estados Unidos 1929), surgimento de movimentos políticos extremistas, líderes belicosos, ditaduras, guerras civis em vários países. Instabilidade que, em vinte anos, o mundo voltaria a enfrentar com a Segunda Grande Guerra (1939-1945), mais ampla e mais destruidora que a anterior.
Nas artes plásticas, o Futurismo e o Cubismo se destacavam da arte tradicional que valorizava a realidade e a natureza. Em oposição antibélica durante a Primeira Grande Guerra, surgiu o Dadaísmo, que negava o racionalismo nas letras e nas artes. Em paralelo, e um pouco antes, os Abstracionistas haviam rompido com a figuração, enquanto o Surrealismo ganhava força em todas os setores artísticos, ao tentar explicitar o psíquico e o inconsciente.

Fig. 1 – Obra surrealista Persistência da Memória, de Salvador Dali

Uma releitura do historiador Francisco Alambert no caderno Ilustríssima da Folha de São Paulo, de 26/09/2021, afirma que, após a abolição da escravatura, expõe-se o dilema brasileiro entre monarquia ou república. O fato antecipa, em quatro décadas, a fragilidade cultural e política do país pela falta de originalidade, criatividade e novos intelectuais, artistas e literatos, uma vez que os atuantes reproduziam pensamentos e obras estrangeiras, ou seja: inexistia algum estilo próprio e brasileiro?
Esse paroxismo abasteceu e motivou a organização da Semana de Arte Moderna de 1922. Realizada entre 13 de fevereiro e 17 de fevereiro de 1922, os artistas propunham uma nova visão de arte a partir de uma estética inovadora, mas ainda inspirada em vanguardas europeias. Visavam a modernização social e artística. Pode-se compará-la a um festival de Pintura, Escultura, Literatura, Poesia e Música e, para viabilizá-la, contou com o apoio da aristocrata e culta sociedade paulista que recebeu e financiou os intelectuais organizadores. Graça Aranha intermediou junto aos empresários Paulo Prado e Freitas Vale. A esposa do primeiro, a Sra. Marinete Prado, a designou, até então sem título, de Semana de Arte Moderna, para marcar aquele encontro cultural ao qual mais adiante seria acrescido o ano de realização. Chocou parte da população a nova forma de se expor a arte brasileira. Rompendo com a ordem acadêmica, ao inaugurar uma renovação no Movimento Modernista no Brasil. Eram outras maneiras de ouvir, fluir e sentir a arte, cujas características mais importantes incluem:

  • Ausência de formalismo;
  • Ruptura com o academicismo e tradicionalismo;
  • Crítica ao modelo parnasiano;
  • Influência das vanguardas europeias;
  • Valorização da cultura brasileira;
  • Fusão de influência e cultura brasileira;
  • Liberdade de expressão;
  • Aproximação da linguagem oral com a utilização da linguagem coloquial e vulgar;
  • Temática nacionalista e cotidiana.

Fig. 2 – Cartaz da Semana de Arte Moderna confeccionado por Di Cavalcanti

O evento aconteceu no Teatro Municipal de São Paulo e foi inaugurado pela palestra do escritor maranhense radicado no Rio e membro da Academia Brasileira de Letras, Graça Aranha, sob o título A emoção estética na arte. O segundo dia com apresentações: música, palestra do escritor e artista plástico Menotti Del Picchia e leitura do poema Os sapos, de Manuel Bandeira, lido por Ronald de Carvalho. No terceiro dia, apresentação do maestro carioca Heitor Villa Lobos, com mistura de instrumentos ainda não conhecidos. Di Cavalcanti, um dos protagonistas da organização, em objetivo não revelado, declarou: “Será uma semana de escândalos literários e artísticos de meter os estribos na barriga da burguesiazinha paulista”.
Os principais nomes dos participantes:

  • Mário de Andrade (1893-1945)
  • Oswald de Andrade (1890-1954)
  • Graça Aranha (1869-1931)
  • Victor Brecheret (1894-1955)
  • Plínio Salgado (1895-1975)
  • Menotti Del Picchia (1892-1988)
  • Sérgio Milliet (1898-1966)
  • Heitor Villa Lobos (1887-1959)
  • Di Cavalcanti (1889-1976)
  • Guiomar Novaes (1894-1979)
  • Anita Malfatti (1892-1935)
  • Tarsila do Amaral (1886-1973).

As duas últimas não estiveram presentes no evento.

Fig. 3 – Theatro Municipal de São Paulo – palco da Semana de Arte Moderna de 1922

A imprensa deu destaque ao escritor Monteiro Lobato, por atacar com veemência as ações da Semana de 22. Ele entendia que a população não estava preparada e, portanto, não podia compreender o que acontecia. Vale relembrar que, em 1917, o escritor já havia criticado a exposição de Anita Malfatti realizada na rua de São Bento, em São Paulo, capital, graças à organização e iniciativa de Di Cavalcanti.
A década de 1920 foi pródiga em iniciativas intelectuais e artísticas, fortalecida pela ocorrência de vários movimentos de divulgação do Modernismo no Brasil:

  • Movimento Pau-Brasil (1924)
  • Movimento Regionalista (1926)
  • Movimento Antropofágico (1928)
  • Movimento Verde-Amarelo (1930)

Em 1930, inicia-se a segunda fase do Modernismo no Brasil, também conhecida como fase de consolidação, quando surgem outros talentos modernistas:

  • Cassiano Ricardo (1895-1974)
  • Tácito de Almeida (1889-1940)
  • Lasar Segall (1889-1957)
  • Joaquim Cardoso (1897-1978)
  • Vicente do Rego Monteiro (1899-1970)
  • Alcântara Machado (1901-1935)
  • Cândido Portinari (1903-1962)
  • Cícero Dias (1907-2003)

Em 1945, aparece a terceira fase do movimento, conhecida como Geração 45, que compreenderá até 1980, dentre eles:

  • João Cabral de Melo Neto (1920-1999)
  • João Guimarães Rosa (1908-1967)
  • Clarice Lispector (1920-1977)
  • Ariano Suassuna (1927-2014)
  • Francisco Brennand (1927-2019)

O jornalista e biógrafo Ruy Castro, em artigos para a Folha de São Paulo, em setembro de 2021, faz uma distinção entre os objetivos da Semana de Arte Moderna de 1922 com seus principais participantes e o Movimento Modernista anterior e ao longo da década de 1920. Constata a ausência, dentre os convidados, de um significativo número de artistas que trabalhavam no Rio – para ele a única metrópole brasileira no período – e de outros artistas consagrados de diferentes regiões do Brasil. Em 1922, o Rio já tinha um tradicional mercado de vida cultural, já atuavam e produziam: Álvaro e Eugênia Moreyra, Ismael Nery, Lima Barreto, Roquete Pinto, Bertha Lutz, Orestes Barbosa, Julia Lopes de Almeida, Cecilia Meireles, Gilka Machado, Theo Filho, Sinhô, Donga, Pixinguinha e Bidu Sayão. Ainda segundo Castro, houve uma explícita preferência por um grupo predominantemente paulista. Sobre a palestra de abertura, informa que não despertou a atenção da plateia, e cita Del Picchia, quase cinquenta anos depois, em seus dois volumes de memórias A Longa Viagem (1970-72). Relata que ele e Oswald de Andrade encomendaram uma vaia ao público presente para incentivar a polêmica que desejavam provocar.
Castro reconhece a importância do evento semanal, mas reitera a existência de um Modernismo explícito e incumbente nas duas primeiras décadas do século 20. Portanto, algo em processo e não inédito ou apenas lançado naquela ocasião de fevereiro de 1922.
Ensaio do maranhense Rossini Corrêa em José Américo, o escritor modernista (Ed. OAB – 1921), afirmava ser o jornalista e empresário Joaquim Inojosa o pioneiro do Modernismo do Nordeste brasileiro com o seu manifesto A Arte Moderna (1924) e a conferência O Brasil Brasileiro (1925). Também foi o grande divulgador dos modernistas paulistas em Pernambuco e na Paraíba. Ressalte-se que estes dois estados promoveram mudanças no ambiente artístico-cultural bem anteriores ao evento paulista. De certa forma, se anteciparam: a Paraíba, com o disruptivo e antilírico livro de poesia Eu (1912), de Augusto do Anjos; e Reflexões de uma cabra, de José Américo de Almeida, novela em série publicada pela revista Nova Era, editada na cidade de Paraíba do Norte. Nova Era e Mauriceia (editada no Recife) desempenharam papel proeminente no Modernismo Nordestino, com importância equivalente à revista Klaxon, editada em São Paulo entre 1922 e 1923. Enquanto em Pernambuco a inquietação intelectual favoreceu a promoção do Congresso Regional do Recife (1926), organizado pelo ainda não conhecido Gilberto Freyre. O mesmo que aconteceu com a Semana de Arte Moderna de 22, também teve efeito retardado, pois seu polêmico Manifesto Regionalista somente seria publicado na década de 1950.
José Américo, como todos os escritores e artistas da Região Nordeste, não foram lembrados pelos paulistas que organizaram a Semana. Ao se lançar escritor no mesmo ano da Semana, considerava o Brasil acomodado à literatura tradicional praticada por escritores preocupados em agradar, sem surpresa, a todos os leitores de diferentes faixas etárias. Américo propôs e conseguiu diferenciar-se por ser profundamente brasileiro e interiorano, ao realçar aspectos psicossociais e físicos, com ironia e bom humor, contidos em Reflexões de uma cabra. A evolução da literatura brasileira deu-lhe razão. Com A Parahyba e seus problemas, em 1923, e em seguida com A Bagaceira, em 1928, lançava a matriz cultural do romance regionalista brasileiro. Além do pioneirismo, fez escola com o Ciclo da Literatura das Secas, na expressão de Tristão de Athayde, quando surgem talentos nordestinos e romances marcantes na década de 1930: O Quinze (1930), de Rachel de Queiroz; Menino de Engenho (1933), de José Lins do Rego; Caetés (1937), de Graciliano Ramos; Cacau (1938), de Jorge Amado, e Nordeste (1937), de Gilberto Freyre, já consagrado em 1933 com sua obra magna Casa-Grande e Senzala.

Fig. 4 – Gilberto Freyre, autor de Casa Grande e Senzala

Despontava, no período, a atuação do jornalista paraibano e professor da Faculdade de Direito do Recife, Assis Chateaubriand, que se tornaria grande mecenas. Na conexão artístico-cultural Recife-Olinda-João Pessoa-Campina Grande, terão destaque nas artes plásticas, a partir de meados do século 20, a geração de pintores: Tomás Santa Rosa, Antônio Dias, João Câmara, Raul Córdula Filho, Chico Pereira, Flávio Tavares, dentre tantos outros.
O Modernismo, por meio da música, alcança o grande público, depois da popularização do baião de Luiz Gonzaga. A música sertaneja nordestina e o canto praiano de Lourival Caymmi atravessaram um período de relativo esquecimento com o domínio da música urbana, do samba-canção e da presença do bolero cubano-mexicano. Ao final da década de 1950, uma onda de nacionalismo faz ressurgir o novo nas diferentes manifestações: no Cinema Novo (Nelson Pereira do Santos e Glauber Rocha); na Bossa Nova (João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes); nas diferentes escolas de teatro: Teatro do Estudante, do Negro, Opinião e Oprimido (Nelson Rodrigues, Paschoal Carlos Magno, Abdias Nascimento, Augusto Boal, Paulo Pontes); e o Tropicalismo dos baianos Caetano, Gil, Gal e Bethânia. Permanecem na memória as grandes intérpretes femininas da MPB: Elizeth, Maysa, Elis, Nara e Clara Nunes. E surgiram compositores e cantores simultaneamente: Chico Buarque, Edu Lobo, Roberto Menescal, Carlos Lira, Marcos Vale, Ivan Lins, Gonzaguinha.
Entre o período da Bossa Nova e o Tropicalismo, seria a vez da ascensão do rock nacional sob a denominação de Jovem Guarda, comandada por Roberto e Erasmo Carlos. O País, de população majoritariamente adulta, passa à liderança das novas gerações de adolescentes e recém-adultos que definem novos padrões de comportamento e consumo. Em paralelo, a rebeldia da juventude se afirmava em greves universitárias na Europa e nas Américas. A descoberta científica da pílula anticoncepcional e consequente revolução sexual asseguram a autonomia e o protagonismo da mulher na sociedade mundial, inclusive no mercado de trabalho.
Os meios de comunicação foram vitrines das inovações tecnológicas recentes: a televisão, dominante na segunda metade do século 20, ocupa o domínio que havia sido do rádio. E terá sua liderança abalada com o aparecimento do computador pessoal, e sobretudo com a internet na virada do século. O som da música brasileira dividirá a preferência entre o múltiplo sertanejo e o funk da periferia das grandes cidades. Agora cada vez mais acessíveis pelos dispositivos digitais que prevalecem no streaming dos tempos atuais.
No entanto, a proeminência será de outro tipo de manifestação criativa: a Arquitetura liderada por Oscar Niemeyer, com a concepção urbanística de Lúcio Costa e paisagismo de Burle Marx, que irão consagrar o nosso Modernismo quando alcança reconhecimento internacional com a construção de Brasília, em 1960. Com a nova Capital Federal, o Modernismo brasileiro associa-se definitivamente à imagem do Brasil no exterior.

Fig. 5 – Brasília – exemplo do Modernismo na arquitetura brasileira mundialmente conhecido

Esse registro é uma tentativa de destacar fatos e personagens que culminaram com o evento paulista, que se tornou mais importante pela repercussão e desdobramentos futuros do que pelo pouco que aconteceu durante a propalada semana, reunida somente em três dias alternativos daquele período. Esta breve nota não pretende, nem se propõe a uma interpretação própria ou revelação inédita: apenas sumariza comentários de vários autores e diferentes fontes. Curioso como uma iniciativa de relativo pouco sucesso, por não atrair grande público ou ampla divulgação, conseguir gradativamente ser relembrado. Tal qual um vinho antigo, ganhou reverberação maior à medida que se aproximava de seu cinquentenário. A partir daí, crescem análises e abundantes interpretações.
Portanto, é natural e necessário que o distanciamento temporal lhe tenha agregado valor, acrescentando importância e fazendo-se jus à prontidão midiática, em especial agora no ano do seu centenário. Em um País com notável e permanente déficit de realizações sociais, com frequentes arritmias no seu processo de evolução histórica, também crivado por avanços e retrocessos, é compreensível buscar signos e exemplos de tentativas de afirmação nacional. Valorizar o que é nosso ao fidelizar nossas raízes culturais e artísticas.
Aí está o valor simbólico dessa inspiração. A este ano, soma-se outra data política significativa: bicentenário da Independência do Brasil. Guardando as devidas proporções dos dois eventos, sabe-se que o Grito do Ipiranga aconteceu fora do centro de decisão da corte no Rio de Janeiro, e sob a vista de poucas testemunhas. Sem revolução, relativamente pacífica e discreta, diverge do que acontecia na América hispânica que se antecipara em confrontos armados em seus movimentos heroicos de independência política. Tanto assim, as províncias brasileiras mais distantes da capital do Império como Pará, Maranhão e Bahia só tomaram conhecimento no ano seguinte. Até o decreto oficial de declaração da independência não foi assinado pelo príncipe regente Dom Pedro, mas pela sua esposa austríaca, a Princesa Leopoldina.
Que o ano em curso de 2022 seja de avivamento intelectual e artístico e de confirmação, em busca de uma verdadeira cidadania e independência política e econômica. Pela soberania da Nação e compartilhamento do bem-estar alcançável para todos os brasileiros.
Isso só será possível com a corresponsabilidade das cinco macrorregiões brasileiras. Para tanto, o Nordeste não precisa de convite, pois nada se fará sem ele.

 

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