DOIS POETAS INCONFIDENTES

Prof. José Osmar Monte Rocha

Cel Veterano (FAB) Jacintho Mendes Lopes Júnior

 

Ao invés de elaborarmos um paper descritivo e aderente ao que a história atualmente conhece, optamos por elaborar um conto baseado nesses mesmos fatos, completando a história dos Inconfidentes. Todo o material que serviu de base para a elaboração desse texto, os fatos, será exposto nas referências.

Nesse aspecto, embora não se possa esquecer a coragem e o entusiasmo de José Joaquim da Silva Xavier, o Tiradentes, diversas outras pessoas participaram ativamente do movimento que tramou aproveitar a derrama para chegar à independência do Brasil. Destes, escolhemos dois poetas da Arcádia Ultramarina, localizada em Vila Rica (atual Ouro Preto).

A descoberta de ouro na região levou à fundação da chamada Vila Rica, em 1711, que passou à condição de Capital da Capitania das Minas, tornando-se um dos maiores núcleos urbanos da colônia, uma verdadeira joia da coroa portuguesa. Essa riqueza ocorreu no campo mineral, trazendo progresso para a região, incentivando também o crescimento da cultura.

Os bandeirantes da Capitania de São Vicente ali haviam chegado primeiro, aproveitando o curso do Rio das Velhas, como Fernão Dias o fizera, e achando o ouro, que logo excitaram a cobiça dos demais, provocando a corrida para a região das Minas e levando à chamada Guerra dos Emboabas, forçando os bandeirantes, após a derrota, em 1709, a se retirarem para o Oeste e desmembrando a Região das Minas da Capitania do Rio de Janeiro.

Aberto o caminho para o controle oficial sobre as lavras de ouro, a produção não apenas enriqueceu a região, com a abertura das estradas reais, como principalmente os cofres da coroa, a qual também buscou reduzir ao máximo os contrabandos de ouro em pó, por meio das casas de fundição, onde o ouro era fundido em barras com o selo da coroa para venda e um quinto ia para o erário real.

Tal cobrança levou à revolta de Felipe dos Santos, o qual fora enforcado em 1720 e tivera seu corpo esquartejado e exposto nas ruas de Vila Rica, sem lograr o sucesso de reduzir as cobranças do quinto.

Vila Rica cresceu e, atrás das riquezas trazidas pelo ouro, chegaram a vir de 30 a 50 mil pessoas a esta vila por volta do meio do século XVIII, tornando-se então o povoado com maior número de habitantes da América Latina. Embora nem todos vivessem diretamente da mineração, tudo ali, direta ou indiretamente, girava em torno dela. Dentro da elite dessa população, seus filhos estudariam na Europa, uma vez que, na colônia, não havia universidades.

Alvarenga Peixoto

Bárbara Heliodora

Tomaz Antôno Gonzaga

É nesse cenário da riqueza de Vila Rica que entramos em cena: eu, Inácio José de Alvarenga, havia passado boa parte da minha formação na Universidade de Coimbra, em Portugal, onde me graduara em Direito, tivera contato com a poesia que acabara levando-me a adicionar o sobrenome Peixoto à minha assinatura, e chegara até a ser juiz de fora em Sintra. Em 1775, fui designado para ser ouvidor em Rio das Mortes, na Colônia (Brasil), retornando às origens.

Lá chegando, tive contato com a riqueza da região das Minas – ali a agropecuária de suporte à mineração e a própria lavra de ouro e diamantes abriu-me os olhos para novas possibilidades, para as quais fui convergindo, principalmente depois de herdar bens de família, até, por fim, deixar a magistratura. Outra riqueza também me encheu os olhos – a vida cultural de Vila Rica.

Os saraus… As reuniões da Arcádia Ultramarina, fundada por Cláudio Manuel da Costa em 1768 (filiada à Arcádia Romana), quando passou a usar o pseudônimo Glauceste Satúrnio. Tudo isso me fez lembrar dos tempos de universidade e mergulhei fundo na vida cultural de Vila Rica, comparável à da Metrópole, passando a utilizar o pseudônimo de Alceu. Neles eram lidos e declamados poemas maravilhosos!

Ali também revi um parente – Tomaz Antônio Gonzaga, que agora usava o pseudônimo de Dirceu, conheci sua paixão, Marília, uma garota bastante jovem, de apenas 17 anos, chamada Maria Doroteia Joaquina de Seixas Brandão, para quem ele chegara a escrever um livro. Ali também encontrei a minha musa, Bárbara, com quem me casei em 1781 e tivemos quatro filhos, dentre eles, Maria Ifigênia, para quem escrevi este poema:

 

Amada filha, é já chegado o dia

Amada filha, é já chegado o dia,

em que a luz da razão, qual tocha acesa

vem conduzir a simples natureza,

é hoje que o teu mundo principia.

A mão que te gerou teus passos guia,

despreza ofertas de uma vã beleza,

e sacrifica as honras e a riqueza

às santas leis do filho de Maria.

Estampa na tua alma a caridade,

que amar a Deus, amar aos semelhantes,

são eternos preceitos da verdade.

Tudo o mais são ideias delirantes;

procura ser feliz na eternidade,

que o mundo são brevíssimos instantes.

 

Já os poemas de Dirceu eram os de um pastor apaixonado, como a lira a seguir:

 

Lira II

Marília de Dirceu – Pintura de Guingnard (1946). (Fonte: Enciclopedia Itaú Cultural)

 

Pintam, Marília, os Poetas

A um menino vendado,

Com uma aljava de setas,

Arco empunhado na mão;

Ligeiras asas nos ombros,

O tenro corpo despido,

E de Amor, ou de Cupido

São os nomes, que lhe dão.

Porém eu, Marília, nego,

Que assim seja Amor; pois ele

Nem é moço, nem é cego,

Nem setas, nem asas tem.

Ora pois, eu vou formar-lhe

Um retrato mais perfeito,

Que ele já feriu meu peito;

Por isso o conheço bem.

Tu, Marília, agora vendo

De Amor o lindo retrato,

Contigo estarás dizendo,

Que é este o retrato teu.

 

Sim, Marília, a cópia é tua,

Que Cupido é Deus suposto:

Se há Cupido, é só teu rosto,

Que ele foi quem me venceu.

 

Nesses saraus também se lia, e tivemos contato com os textos iluministas, proibidos naquela época e, mais, com o aumento da pressão da Coroa, exigindo cada vez mais impostos, planejando, inclusive a derrama, a cobrança à força dos valores esperados em impostos, nos serviu de combustível para planejarmos um movimento.

Esse movimento objetivava libertar o Brasil da opressão portuguesa, fazendo com que tivéssemos a rápida adesão de diversas personalidades da região, dentre os quais, diversos poetas. Chegamos a contactar pessoas ilustres no exterior, em busca de apoio, mas nada de concreto conseguimos. Mesmo assim, criamos nossa bandeira: uma bandeira branca com um triângulo verde e os dizeres: Libertas quae sera tamen (Liberdade, embora que tardia). Contávamos também com a adesão inflamada do Alferes José Joaquim da Silva Xavier, o Tiradentes, que nos estimulava cada vez mais à liberdade!  De verso em verso, o movimento crescia, ganhava forma…

Bandeira da Inconfidência Mineira

 

Contactamos também um certo fazendeiro, o Coronel Joaquim Silvério dos Reis, que também se sentia ameaçado pela cobrança dos impostos atrasados, mas não contávamos que ele nos delataria! Sim, ele entregou o movimento ao Visconde de Barbacena, que suspendeu a derrama e foi prendendo a todos nós.

Fomos presos, interrogados e trinta e quatro inicialmente foram condenados à morte, embora tivesse negado até o fim, continuei com todos no presídio da Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, aguardando a sentença final.

Nesse interim, a dor da saudade me inspirou a escrever a Lira:

Lira

Bárbara bela,

do Norte estrela,

que o meu destino

sabes guiar,

de ti ausente,

triste, somente

as horas passo

a suspirar.

Isto é castigo

que Amor me dá.

 

Por entre as penhas

de incultas brenhas

cansa-me a vista

de te buscar;

porém não vejo

mais que o desejo,

sem esperança

de te encontrar.

Isto é castigo

que Amor me dá.

 

Eu bem queria

a noite e o dia

sempre contigo

poder passar;

mas orgulhosa

sorte invejosa

desta fortuna

me quer privar.

Isto é castigo

que Amor me dá.

 

Tu, entre os braços,

ternos abraços

da filha amada

podes gozar.

Priva-me a estrela

de ti e dela,

busca dois modos

de me matar.

Isto é castigo

que Amor me dá.

 

Dirceu também sentiu a dor da separação de Marília, expressa neste poema:

Lira XIX

Nesta triste masmorra,

De um semivivo corpo sepultura,

Inda, Marília, adoro

A tua formosura.

Amor na minha ideia te retrata;

Busca extremoso, que eu assim resista

À dor imensa, que me cerca, e mata.

 

Quando em meu mal pondero,

Então mais vivamente te diviso:

Vejo o teu rosto, e escuto

A tua voz, e riso.

Movo ligeiro para o vulto os passos;

Eu beijo a tíbia luz em vez de face;

E aperto sobre o peito em vão os braços.

Conheço a ilusão minha;

A violência da mágoa não suporto;

Foge-me a vista, e caio,

Não sei se vivo, ou morto.

Enternece-se Amor de estrago tanto;

Reclina-me no peito, e com mão terna

Me limpa os olhos do salgado pranto.

Depois que represento

Por largo espaço a imagem de um defunto,

Movo os membros, suspiro,

E onde estou pergunto.

Conheço então que amor me tem consigo;

Ergo a cabeça, que inda mal sustento,

E com doente voz assim lhe digo:

“Se queres ser piedoso,

“Procura o sítio em que Marília mora,

“Pinta-lhe o meu estrago,

“E vê, Amor, se chora.

“Se lágrimas verter, se a dor a arrasta,

“Uma delas me traze sobre as penas,

“E para alívio meu só isto basta”.

 

Foi com muita dor que testemunhamos a morte de Cláudio Manuel da Costa, vítima do desespero na prisão, e o heroísmo do Tiradentes – que serenidade! Assumira toda a responsabilidade pelo movimento.

Com isso, apenas ele fora condenado à forca. Nós, entretanto, iríamos ao degredo perpétuo, eu, em Angola; Dirceu, em Moçambique… Dali só sairíamos sem vida… Eu em 1792, após contrair uma febre tropical, enquanto Dirceu, apenas em 1810, após ainda ter se casado com Juliana de Souza, filha de um rico traficante de escravos. Apesar disto, ele ainda sentiria saudade de sua musa, como deixava transparecer:

 

É gentil, é prendada a minha Alteia;

As graças, a modéstia de seu rosto

Inspiram no meu peito maior gosto

Que ver o próprio trigo quando ondeia.

Mas, vendo o lindo gesto de Dirceia

A nova sujeição me vejo exposto;

Ah! que é mais engraçado, mais composto

Que a pura esfera, de mil astros cheia!

Prender as duas com grilhões estreitos

É uma ação, ó deuses, inconstante,

Indigna de sinceros, nobres peitos.

Cupido, se tens dó de um triste amante,

Ou de forma de Lorino dois sujeitos,

Ou forma desses dois um só semblante.

 

Marília ainda viveria vagando pelas ruas de Vila Rica até os noventa anos, à espera do seu Dirceu que não viria…

Vila Rica (hoje, Ouro Preto)

Assim foram interrompidos os idílios de dois pastores arcadianos, fazendo com que a minha musa, cuidando sozinha, deixasse para nossos filhos os conselhos:

A Meus Filhos

Meninos, eu vou dictar

As regras do bem viver,

Não basta somente ler,

É preciso ponderar,

Que a lição não faz saber,

Quem faz sabios é o pensar.

Neste tormentoso mar

D’ondas de contradicções,

Ninguem soletre feições,

Que sempre se há de enganar;

De caras a corações

A muitas legoas que andar.

Applicai ao conversar

Todos os cinco sentidos,

Que as paredes têm ouvidos,

E também podem fallar:

Ha bixinhos escondidos,

Que só vivem de escutar.

Quem quer males evitar

Evite-lhe a occasião,

Que os males por si virão,

Sem ninguem os procurar;

E antes que ronque o trovão,

Manda a prudencia ferrar.

Não vos deixeis enganar

Por amigos, nem amigas;

Rapazes e raparigas

Não sabem mais, que asnear;

As conversas, e as intrigas

Servem de precipitar.

Sempre vos deveis guiar

Pelos antigos conselhos,

Que dizem, que ratos velhos

Não ha modo de os caçar:

Não batam ferros vermelhos,

Deixem um pouco esfriar.

Se é tempo de professar

De taful o quarto voto,

Procurai capote roto

Pé de banco de um brilhar,

Que seja sabio piloto

Nas regras de calcular.

Se vos mandarem chamar

Pâra ver uma funcção,

Respondei sempre que não,

Que tendes em que cuidar:

Assim se entende o rifão.

Quem está bem, deixa-se estar.

Devei-vos acautelar

Em jogos de paro e tópo,

Promptos em passar o copo

Nas angolinas do azar:

Taes as fábulas de Esopo,

Que vós deveis estudar.

Quem fala, escreve no ar,

Sem pôr virgulas nem pontos,

E póde quem conta os contos,

Mil pontos accrescentar;

Fica um rebanho de tontos

Sem nenhum adivinhar.

Com Deus e o rei não brincar,

É servir e obedecer,

Amar por muito temer

Mâs temer por muito amar,

Santo temor de offender

A quem se deve adorar!

Até aqui pode bastar,

Mais havia que dizer;

Mâs eu tenho que fazer,

Não me posso demorar,

E quem sabe discorrer

Póde o resto adivinhar.

 

Apesar de toda essa tragédia vivida, dali partiu a inspiração que o Brasil precisava para buscar sua independência, que ocorreria trinta anos depois do sacrifício de Tiradentes.

 

 

Referências

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DIAS, Letícia. Revolta de Felipe dos Santos, o que foi? História, Causas e Consequências. Goiânia: Conhecimento Científico, 2021. Disponível em: https://conhecimentocientifico.com/ revolta-de-filipe-dos-santos/. Acesso em: 08 jun. 2022.

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