O Centenário do Primeiro voo sobre o Atlântico Sul

 

Cel Veterano (FAB) Jacintho Mendes Lopes Júnior

 

 

Num raid comemorativo do Centenário da Independência, Portugal se uniu para apoiar os intrépidos tripulantes Sacadura Cabral e Gago Coutinho em uma epopeia digna do livro que levavam a bordo para o Rio de Janeiro – Os Lusíadas.

Para os portugueses, comemorar o centenário da independência do Brasil, agradecendo o pronto apoio brasileiro para a legitimação da República Portuguesa, em 1910, soava como uma ação diplomaticamente interessante. Assim, em abril de 1919, o Almirante Sacadura Cabral, piloto da Marinha Portuguesa, propunha ao Ministro da Marinha português este ousado projeto de aquisição e emprego de um hidroavião nessa difícil empreitada[i].

Pouco depois dessa proposta, chegava o primeiro hidroavião a atravessar o Atlântico Norte, a aeronave quadrimotora Curtiss NC-4 Liberty, da Marinha Americana, que vinha sob o comando do Capitão-Tenente Albert Cushing Read, que ancorara no Rio Tejo na noite de 27 de maio de 1919[ii]. Para que isto fosse possível, houve o apoio de diversos navios ao longo da rota. Os portugueses contariam com esse apoio?

Como Portugal vinha de um período tumultuado, resultante da recente Proclamação da República e de reações pró-monarquia e seu consequente impacto na economia, haveria sérias limitações ao apoio financeiro a essa operação.

Com isto, a tripulação lusitana deveria ser capaz de garantir um rumo preciso de sua aeronave, ter condições de obter continuamente sua posição e contar com motores confiáveis o bastante para que pudesse cruzar o Oceano Atlântico, numa rota semelhante à que Cabral fizera em 1500.

Para resolver as questões da navegação, o Almirante Sacadura Cabral desenvolveu um sextante com horizonte artificial, para auxiliar na obtenção da posição da aeronave, semelhantemente ao que faziam as tripulações dos navios há séculos, mas com a possibilidade de não depender do horizonte natural como referência, viabilizando o voo sobre nuvens ou nevoeiros. Em relação ao vento, o Comandante Gago Coutinho havia desenvolvido um corretor de rumos, que facilitava a obtenção do vento em relação à aeronave e permitia a correção de deriva por ele provocada.

 

Sextante com Horizonte Artificial

Corretor de Rumos

Fig. 1 – O sextante com horizonte artificial e o corretor de rumos

A preocupação com a navegação precisa fez com que o Almirante Sacadura Cabral substituísse o segundo piloto, Ortins de Bettencourt, por um navegador, que foi o Comandante Gago Coutinho. Apesar do trabalho extra por ser ele o único piloto, houve o ganho de ter um navegador ocupado em permitir que a aeronave chegasse ao seu destino.

A escolha lusitana pela aeronave recaiu sobre o hidroavião monomotor Fairey FIII-D MkII, equipado com um motor Rolls-Royce[iii]. Um aspecto que se tornou útil no transcorrer do voo foi que haviam sido adquiridos 3 hidroaviões (Lusitânia, Pátria-Portugal, que era um nome oficioso, e Vera Cruz, nome dado pela primeira-dama brasileira), os quais acabariam sendo utilizados ao longo do percurso.

Fig. 2 – Hidroavião Lusitânia deixa Portugal rumo ao Brasil

 

O Hidroavião Lusitânia decolou de Lisboa no dia 30 de março de 1922, passando pelas Ilhas Canárias, por Cabo Verde, aos Penedos de São Pedro e São Paulo, Fernando de Noronha, Recife, Salvador, Porto Seguro, Vitória e Rio de Janeiro, onde foram recebidos como heróis, no dia 17 de junho de 1922[iv].

Fig. 3 – Almoço em homenagem à tripulação portuguesa na Escola de Aviação Naval, em junho de 1922

 

Embora os recursos inovadores de navegação desenvolvidos lhes permitissem chegar aonde desejavam, o mesmo não pôde ser obtido em relação aos motores, que levaram a dois acidentes próximos ao Penedo de São Pedro e São Paulo, já em águas brasileiras. Tal situação os levou a trocar de aeronave para concluírem a jornada. Outro fator que prejudicou um pouco o rendimento da viagem foi o consumo maior que o projetado pelo fabricante, levando-os a pousar no Arquipélago de São Pedro e São Paulo e não em Fernando de Noronha, conforme inicialmente planejado. Com a segunda aeronave, devido à falha do motor que os levou a uma amerissagem forçada a 170NM de Fernando de Noronha, ficaram dois dias à deriva, até serem resgatados pela tripulação do navio carvoeiro inglês Paris-City.

Os portugueses também disponibilizaram três navios de guerra para apoio ao Lusitânia – o República, o Cinco de Outubro e o Bengo, que zarparam em 25 de março e um deles recebeu os aviadores em São Pedro e São Paulo[v].

Fig. 4 – As viagens de Cabral e de Sacadura Cabral

 

Tratava-se, pois, de um raid pioneiro que durou 79 dias, mais de 62 horas de voo, numa distância de 8383km, a qual contou com recursos inovadores para a navegação, mas que ainda não dispunha da confiabilidade dos motores com a qual contaria, mais tarde, Charles Lindberg, em 1927, ao fazer a travessia sem escalas do Atlântico Norte. A tripulação portuguesa composta pelo Almirante Artur de Sacadura Freire Cabral (1881-1924) e pelo Comandante Carlos Viegas Gago Coutinho (1869-1959) trouxe o pioneirismo lusitano aos céus nunca antes navegados.

Os portugueses voltariam ao seu país e, pouco mais de dois anos depois, faleceria o Almirante Sacadura Cabral, em um voo de Amsterdã a Lisboa, trazendo outro hidroavião. Comovido pelo evento com esse pioneiro lusitano, Santos-Dumont enviou a carta a seguir a Gago Coutinho:

Fig. 5 – Carta de Santos-Dumont ao Alte Gago Coutinho

 

 

 

Referências

[i] ROSA, Gonçalo Pereira. Sacadura Cabral e Gago Coutinho, os Gloriosos Aviadores de 1922.Lisboa: National Geographic Portugal, 2022. Disponível em: https://nationalgeographic.pt/historia/grandes-reportagens/2921-sacadura-cabral-e-gago-coutinho-os-gloriosos-aviadores-de-1922. Acesso em: 14 jun. 2022.

[ii] WIKIPEDIA. Curtiss NC-4. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Curtiss_NC-4. Acesso em: 14 jun. 2022.

[iii] STUDART, Alberto. Gago Coutinho e Sacadura Cabral, heróis portugueses que fizeram a primeira travessia aérea do Atlântico Sul. Fortaleza: O Povo Online, 2011. Disponível em: https://blogs.opovo. com.br/asaseflaps/2011/12/18/gago-coutinho-e-sacadura-cabral-herois-portugueses-que-fizeram-a-primeira-travessia-aerea-do-atlantico-sul/. Acesso em: 14 jun. 2022.

[iv] WANDERLEY, Andrea C. T. Os Aeronautas Portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral no Brasil, em 1922. Brasília: Brasiliana Fotográfica, 2019. Disponível em: https://brasilianafotografica.bn.gov.br/ ?p=13038. Acesso em: 14 jun. 2022.

[v] MEDEIROS, Rostand. 100 Anos do Voo dos Portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Natal: Tok de História, 2022. Disponível em: https://tokdehistoria.com.br/2022/04/06/100-anos-do-voo-dos-portugueses-gago-coutinho-e-sacadura-cabral/. Acesso em: 14 jun. 2022.

 

 

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